sábado, 22 de setembro de 2012

CASA DA INFÂNCIA - Maysa Machado


foto Paulo Camarão






CASA DA INFÂNCIA


                                                                                           Maysa Machado


As recordações surgem em cada um de nós com cheiros, cores e sons. A casa da infância é um mundo para sempre mágico.
Lá na minha, a mais antiga das que morei, ficou gravada a voz de minha avó materna. Ora, solene e doce contando-nos histórias da carochinha, antes de dormirmos, ora ativa e apressada chamando-nos para a merenda servida à tardinha, entre quatro e cinco horas.
Na primeira, o quase sussurro das folhas percorridas, com elegância por ela, buscando no grosso livro, cheio de histórias, alegrias e medos que iam sendo despertos; nossa curiosidade em ver as ilustrações em bico de pena, lindas e detalhadas, conquanto parcimoniosas em quantidade, pois no tempo da minha infância o texto prevalecia.
Na segunda, a voz solta expressando uma ordem mais que um convite: — Crianças venham merendar! Ou: — Crianças a merenda está pronta.
E, então o cheiro de mate quente, em minha memória, toma conta da cena. A luz do dia que se abrandava, a roupa suada da brincadeira de pique, a mão lavada antes de sentar à mesa, e o rosto ainda fumegante e vermelho da correria, tudo misturado à incerteza pelo o quê a noite ia nos oferecer.
O brilho da noite e das estrelas, associado ao mistério de viver.
Criança tinha hora para dormir, criança obedecia aos mais velhos. Um adulto, em quase todas as famílias, ficava disponível para contar, ou inventar histórias.
As do meu pai eram aventuras pelos caminhos da fazenda em que nasceu e vivia desde pequenino. O rio, o banho nas águas frias e passageiras. A bola de meia de todo garoto esperto.
As aventuras de subir em árvores e colher seus frutos proibidos pela altura em que estavam. O gosto de pegar a fruta no pé e sorver seu sumo, ou seu travo de cica antes do tempo.
As histórias de uns misturadas as dos outros.
 Surpresas e inquietações movidas pela saudade do que foi ficando para trás, lá na infância, um lugar mágico e distante do que hoje habitamos. Os adultos em que nos transformamos, feitos de pressa e ordens para cumprir e repassar.
Nós morávamos na infância, hoje, ela apenas nos visita.

Santa Teresa, 22 de setembro de 2012.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

TRILHOS EM DESUSO - COMPASSO DE ESPERA - Maysa Machado

foto Sonia Simões













TRILHOS EM DESUSO - COMPASSO DE ESPERA -

                                               Maysa Machado

O “rango” acabou. É preciso sair. 
Santa não tem mais padaria, nem horti fruti tem, por aqui. A música que ia e vinha, entrecortada ou embalada pelo sacolejo estridente do bondinho amarelo, mudou de horário. O piston toca em surdina, os homens da política agem em segredo. Compram, vendem, oferecem, viajam... Tentam copiar soluções de fora.
As pessoas se juntam e se dispersam. Encontros, desencontros. Buscas e desânimos. Os trilhos dos bondes correm paralelos, e em poucos trechos misturam-se o ir e o vir. Um dos mais belos grafismos urbanos.
Claro, tempo e espaço resolvem quase tudo ou resta-nos a espera desolada desse cotidiano sem rumo.
 E o rumo? O que foi feito das linhas, trilhos sem linhas, pés que pisam o frio trilho... Não range mais sobre os trilhos o velho e serelepe bonde. A faísca e o brilho? Escondem-se.
Enquanto isso, enquanto aquilo. 
O entre não se dissipa antes do tempo.
Entra e sai. Vai e vem.
 — Cadê você?
—Estou aqui, não me vê?
—...
—Estou aqui, dentro, ocupando o teu coração.
E não são mais trilhos afiados, feito navalha, que cortam o bairro, ânsia de trem - sem o apito, com muito dem-dem.
O silêncio é cortante. O trilho está aí, mas o trem, o bonde? Onde? Onde?
Um maquinista ficou até o último instante. Até a última viagem.
Estribos... Em movimento descem os passageiros, sobem os passageiros. Desciam. Subiam.
Uns e outros viajam Viagem única para uns, era diária para outros. Derradeira pros que ficaram na curva da rua principal.
Vamos juntos rever os caminhos de prata. Segui-los, mostrar que estão emaranhados, paralelos em retas subidas e descidas, e, volteios sinuosos que, ainda, aguardam o bonde, as pessoas, os forasteiros, as risadas e o frescor do bairro que, por ora, amanhece sem alegria...
Santa Teresa, 07 de setembro de 2012.