POESIA - EXPRESSÃO DA VIDA...
Recebi e li um poema lindo.Escrito por um jovem que amo, e me foi apresentado no dia do seu nascimento.O primeiro bebê que
segurei no colo, como costumo repetir, sem exaustão. Nossa relação é de muito
carinho. Ficamos todos os anos de sua infância, sem vermos um ao outro, mas se
a vida coloca distâncias geográficas entre pessoas amadas, o afeto mantém-se como
seiva que, alimentada, só traz vigor ao existir.
O poema revirou minha cabeça, todo o sentimento percorrido
em mais de quatro décadas. Não conseguia ler direito, tal a sofreguidão.
TREM
DA HISTÓRIA, de IGOR GRABOIS.
Parabéns corajoso e sensível amigo Igor. Que teus filhos,
Gilberto e Maria, frutos do amor e da coragem diante da vida, sigam bem perto a
tua luta para ressignificá-la.
Mais Poesia!
Maysa Machado
TREM DA HISTÓRIA
Igor Grabois
Nasci onde o trem da história passou,
Em uma sala pintada de verde
Revisitada em sonhos de quando em quando
As notícias vinham da letra impressa
Progresso, Vitória, Nova China
E o camelô dos domingos saltava em preto e branco da TV
Homens vinham de tempos em tempos
E depois não reapareciam
Uma cidade que mudava
Mas era inamovível
As torres de vidro e aço não eram ainda construídas
A avenida grande ainda projetada em um riacho
Casas se espalhavam em ondulações
Parques, verdadeiras clareiras no cimento e asfalto
Carros passavam à distância
Dez quarteirões no escurecer quando vinha da escola
E me arriscava nos primeiros escritos
Minha letra miúda cada vez mais ilegível
Os anos escolares passavam devagar
Um no prédio velho, outro no prédio novo
Alternados assim
Mas os dias eram inalterados
Era tanto movimento
Não se notava a diferença
Era como se tudo fosse parado
Um tempo que não passava
As caras eram fechadas
Então vinha um som uma palavra uma frase no muro
Um cartaz um livro distante
Para um refrigério e um alívio
Em um passado não muito distante
Uma tarde no Gáudio de São Vicente
Uma brisa do mar virou um abraço terno de reencontro
Há mais lugares que revisito em sonhos
Mas é um lugar sem mar
A mudança da cidade que só se nota
Quando já feita
Instantes que se contam pelos passos
Como projeção do espaço
A física moderna diz que o tempo não existe
Mas o tempo volta na nostalgia do não vivido
De tempos duros que parecem bons aos dias de hoje
Perseguia a palavra em calçada pisada
Nunca pude cometer desatinos
No máximo um cinema
Uma aula cabulada no shoping
Me lembro da bolsa pesada de livros
Da chácara de flores do jogo de taco
Do vizinho português que apanhava do pai com fio de ferro
O salário mínimo era trezentos e sessenta cruzeiros
E o filho do encanador filava a sopa feita pela minha avó
Que fazia cerâmica e dava aulas de matemática na mesa da
cozinha
Eu me inspirava por qualquer emoção
Comprava fascículos na banca de jornal do Peg-Pag
E gibis na avenida Morumbi
Seguia pela cidade de bicicleta
Em passeios sem esforço
Sem temer o tráfego e me metendo em algum bosque de
eucaliptos
Eu não tinha irmãos nem primos
E ninguém sobrou dessa época
Por isso essa sede de pertencimento
Uma raiz que se planta no mundo
E uma sensação de corte e de perda
Houve uma vez em que um cão voltou
Que foi e não voltou mais
Como todos que iam e vinham
Estranhei as distâncias
Centro velho e centro novo
Galeria Metrópole Lojas Americanas
Sopa Paulista
Passeios no calçadão recém-inaugurado
A livraria do Gazeau na praça da Sé
Traços de uma cidadania incompleta
Cada vez mais distante
E mais tarde passei a ansiar pelos bares da outra cidade
Revisito as mesmas paisagens
Tudo parecia tão grande e agora parece na medida
O tempo é outro, os olhos são outros
Mas a angústia parece a mesma
De quando descobri as cartas da Flavia Shilling
Na Brasiliense da Barão de Itapetininga
No mesmo dia em que ouvi Ana de Amsterdam
Coisas tão pequenas misturadas na grandeza
Uma grandeza que não era minha
Uma história dos grandes fatos e de míticos personagens
E de pessoas que trabalham e se movimentam
Algo não percebido e que um dia explode
Uma história escondida nas catacumbas quase sem esperança
Aos domingos se lia o Estadão
Grossos cadernos de classificados e artigos de fundo
Lidos na luz mortiça da cozinha
Me deitava ás dez mas a insônia levava pra além da meia
noite
Quantas noites amanhecidas na leitura
Sempre os livros me povoando
A vizinha já estava acordada antes do sol nascer
No muro a observar a vida alheia
O trem da história circulava em quatro paredes
Esperança era frase pixada em um muro
Uma faixa perdida na porta de teatro
Uma matéria de revista, uma canção impressa no vinil
Hoje se pode ao menos respirar
Conhecer o que é preciso
E agir se assim se quiser
Mas há uma falta de cada ponto coberto
Do perigo iminente
E da certeza do que éramos
Era um tempo sem luz
De sussurros e encontros clandestinos
Um tempo de guerra
Não se escolhiam os soldados
Nem se reconheciam os inocentes
Um tempo de coturnos batidos
E inimigos à espreita
Um tempo que vem e vai na memória
Hoje parece um sonho ruim e saudoso
Vivi onde passa o trem da história
Descortinando o trilho, descrevendo a paisagem
Enxergando a luz do fim do túnel
Andei por onde anda o trem da história
Respirando o fumo da máquina
Em meio ao barulho ensurdecedor
Zona Leste, junho de
2011.
PS: Igor GRABOIS, economista e militante político, prestou, ontem, depoimento na Comissão da Verdade da Assembléia Legislativa de São Paulo. Filho, neto e sobrinho de três desaparecidos políticos, mortos pelo Estado Brasileiro. Durante o regime militar autoritário instalado, após o Golpe de 1964, que destituiu o Presidente João Goulart e aboliu, por 21 anos, os direitos civis conquistados pelo povo brasileiro na democracia.
Um abraço a todos.
Maysa