DATA CENTENÁRIA
Maysa Machado
A vida quase sempre, em meio às lembranças, oferece paisagens, sons, cheiros, frases. Não são apenas sensações renovando momentos percorridos... são pequenas e sábias repetições.
Corria a década de 70. Morávamos na Urca. O casal e seus dois filhos. No apartamento pequeno, de sala, dois quartos, árvores e pássaros, além do suave ranger do bondinho do Pão de Açúcar, ainda, pintado de vermelho — subindo e descendo o morro — as cigarras cantavam, e enlouqueciam o despertar, tornando-o compulsivo, às cinco e meia da manhã.
Nesse trecho do bairro, incrustado entre a Praia Vermelha e a enseada da Baía de Guanabara, o asfalto ficava atapetado por minúsculas flores amarelas, que os garis, um pouco mais tarde, varriam e colocavam na caçamba.
Continua até hoje pacato, bucólico, um paraíso para quem gosta de viver em tranqüilidade. Um pouco mais adiante, a pracinha do Quadrado com seus barcos de pequeno porte. Chama-se, de fato, Praça Cacilda Becker.
Em 74, Caetano gravara Lupicínio, a canção ecoava. “Felicidade foi-se embora/ a saudade no meu peito inda mora/ É por isso que eu gosto lá de fora/ porque sei que a falsidade não vigora... A melodia nostálgica invadia nossas almas, em grande parte, doídas pelo cotidiano sem liberdades, de expressão, ir e vir, reunião.
Algumas tardes, vinha nos visitar um dos avós das crianças. Elegante, discreto, num tom quase cerimonioso, ficava ali conversando com os netos, e tomando o chá inglês, aroma de bergamota, que lhe era servido, com amor.
Meu sogro era uma pessoa encantadora. Reservado, porém solícito; de quando em quando um comentário leve, irônico.
A canção rodava num LP, em suas 78 rpm.
Sabia trechos da letra, repetindo-os como quem filosofa:
...O pensamento parece uma coisa à toa/ mas como é que a gente voa/ quando começa a pensar...”
Assim, fiquei sabendo de sua predileção pelas composições do autor — Lupicínio Rodrigues — gaúcho, como ele se sentia.
Hoje, nesta data, se ainda entre nós estivesse, espalhando com habilidade e sabedoria tudo que descobriu e conheceu, havíamos de comemorar seus cem anos de forma suave e bem humorada. Relembro com saudade sua importante passagem por minha vida. Repetiria o gesto e colocaria as músicas lindas, de seu compositor preferido para tocar, no cd. Quem sabe não o ouviria repetindo frases melódicas, enquanto ia sorvendo, no chimarrão, goles de esperança? Compartilhando causos e notícias dos bastidores políticos, da sofrida época.
Rio, 8 de agosto de 2011