domingo, 8 de novembro de 2009

BEATRIZ VICÊNCIA BANDEIRA RYFF

Foto Leandro Pimentel/ Leblon
-Rio-1999











Centenário de Nascimento de Beatriz Vicência Bandeira Ryff - Poetisa -Ativista Política




Dona Vivi faz cem anos!

Maysa Machado *




O Leblon é um bairro claro, o sol entra cedo pelas frestas das cortinas de tiras de bambu... A brisa lhe faz companhia. Depois, um vento encanado passeia, sem pedir licença, pelo longo corredor. É comum ouvir-se o estrondo das portas... Que nos tira o sossego.
Está quieta em seu canto. Deitada no quarto, a cabeça no sentido contrario à porta de entrada, voltada para as ondas do mar.
O espaço pouco que ocupa... menor fica com o passar do tempo. Não diria que definha.
Desvanece.
Está quase nuvem. Branquinha, como num céu bem azul e luminoso, independente do movimento dos pássaros, do farfalhar das palmas dos coqueiros, lá onde o asfalto se perde em areias e depois vira mar imenso.
Seu sorriso não aflora constante; nem há sinal das angústias, tantas, sentidas pela vida nas muitas lutas que travou.
Seu rosto é expressivo, contém viço e boniteza. Rugas? Pele sulcada por elas? Não, ali não residem, não fizeram nenhum estrago no semblante, ainda, altivo.
Está serena, desligando-se aos poucos do fio - terra que a mantém viva.
Que fio será esse? Cada um tem o seu.
O dela dura um século. Medem-se os sonhos, perdas, dores... Mede-se, também, uma invencível determinação tecida em poesia e alguns travos de amargura.
Tem a aparência cuidada. A dignidade a acompanha, pois, nada pede ou precisa.
As sombras lhe cobrem, dia e noite, o horizonte, mas disso não reclama. Uma vez que escolheu a treva progressiva.
No silêncio vive. Dá-nos a impressão que assiste sua história, numa tela em que as imagens, antes indeléveis, agora se esfumam, com suavidade e, não deixam qualquer possibilidade de serem mostradas de novo.
Há economia dos movimentos... É preciso não mexer com quem está quieta! Frase ouvida várias vezes, nos últimos anos, acompanhada de um sorriso maroto.

Nos primeiros anos de convivência, minha curiosidade era aguçada, por uma faiança pendurada à porta de seu quarto. O ladrilho, em fundo branco, transcrevia um adágio italiano. Nele, a mulher vista sob o interesse masculino, relacionado às suas idades - dos 20 aos 60 – e comparando-as aos 5 continentes.
Um convite perigoso, quase um desafio para as mais jovens; desdenhava o passar dos anos, com encanto.

Nós duas aprendemos que o tempo pode ser cultivado.
Em nossos encontros li, para mútuo deleite, uma edição das Cartas de Graciliano Ramos - seu querido amigo, as crônicas leves e bem-humoradas de Rubem Braga, os textos densos de Nélida Piñon, Lygia Fagundes, Cecília Meireles.
Em todos esses momentos acrescentou reflexão lúcida, fresca, interessante.
Com imensa sensibilidade respirou o ar delicado de seus poemas e, renovada, os recitou de cor.
Por gosto cantamos.
Antiga professora de música e de técnica vocal, do Conservatório Nacional de Teatro, foi relembrando canções do folclore amazônico, as de Waldemar Henriques, como Tamba-Tajá; as canções imperiais na obra de Carlos Gomes - Tão longe de mim distante; as Bacchiannas de Villa-Lobos; algumas canções praieiras de Caymmi. E, da MPB, do seu preferido Paulinho da Viola, repetiu momentos cantarolando que Viver não é brincadeira não...

Muito tenho aprendido com as histórias e lições de sua vida. Da militância comunista, às prisões políticas, ao exílio em dois períodos distintos de ditadura em nosso país.
Gosto de sua poesia. E, acho pitoresca sua opinião irredutível, prefere ser chamada POETISA e jamais poeta!

Nossa intimidade foi uma construção difícil. Um tempo longo nos atravessou, mas o mesmo tempo trouxe-nos como fruto maduro, de nossas vivências, o que pode ser chamado: apaziguamento. Tornamos-nos amigas.

Vivi, Beata, outros apelidos tem, mas é no seu próprio imaginário a Beatrice, de Dante. Faz pouco o declamava no original.

Dichoso cumpleaños, señora!
Mamá hace cien años.

**************

• Beatriz Vicência Bandeira Ryff, carioca, do Méier, nascida em 08.11.1909. Uma mulher brasileira que se dedicou à causa da transformação política e social em seu país. Participou de distintos momentos históricos pela luta a favor das liberdades democráticas, dos Direitos Humanos e, por mais de oitenta anos, o fez a cada dia.
• Presa política no período da ditadura Vargas, companheira na Cela Quatro, com Nise da Silveira, Maria Werneck e outras corajosas companheiras. Inclusive Olga Benário.

• Exílios na Argentina, Uruguai (1936/37). Asilo na Embaixada da Iugoslávia 1964. Exílio na França - durante o Golpe de 64/67


• Vivi – apelido de criança, dado por seu amado pai. Alípio Abdulino Pinto Bandeira, militar do exército, indigenista, companheiro do Mal. Rondon.

Perguntei se gostava de ser chamada assim. Respondeu com um sorriso feliz no rosto:
- Gosto muito!
Uma pausa e, acrescenta:
- Não esqueço o que fui!


• Beata – apelido dado por seu marido jornalista Raul Ryff, falecido em julho de 1989. Foram casados por mais de cinquenta anos.
Tiveram três filhos. Vitor Sérgio, jornalista (falecido), os gêmeos: Luiz Carlos (Físico) e Tito Bruno (economista).
Seus descendentes:
Oito netos: Patrícia,Luiz Antonio, Fabiano,Carlos Eduardo, Júlia, Luiz Rodolfo, André e João Alberto.
Cinco bisnetos:
Maria Beatriz, Ana, Raul,Cecília e Lara.

• Uma das fundadoras do Movimento Feminino pela Anistia e Liberdades Democráticas-RJ.


* a autora é socióloga e foi nora de Beatriz.




Santa Teresa, 8 de novembro de 2009.

Abraços ao que passarem por aqui.

Maysa







4 comentários:

Érico Cordeiro disse...

Prima,
Parabéns à Dona Vivi.
Que belíssima história de vida!!!
Nestes tempos de mulheres melancia e abobrinhas, é muito bom ver que ainda existem Vicências a nos dignificar e a lutar por um mundo mais justo e fraterno!
Abraços fraternos!!!

Maysa disse...

Caríssimo Érico

É preciso que sejamos mais altruístas e sobretudo, tenhamos convicção política para determinar sentido em nossas vidas!
As Vicências, bem sabemos,são poucas.
O impasse está na sociedade tb criada por nós:
Quer,constrói e destrói as Terezinhas, Genis e mulheres melancia?

Abcs carinhosos

Maysa

Edna disse...

Maysa
É um desafio compor minha existência,
inúmeras questões me assoberbam à todo momento...
O desejo de fugir de tudo e todos, deixar de pensar no tempo, é uma constante, daí a empatia com o viver silvícola, é sedutor deleitar-me com o exercício de conecção à emoções sutís
Deixar seu lado poetisa se
expressar é também entrar em contato com essa sutileza...
Legal ter encontrado uma amiga que
permite essa expressão
Vicência, essa figura com tantas riquezas imateriais, também se nutriu nessa estrada

Maysa disse...

Querida Edna

Se a cada dia a gente não esquecer que está de passagem por aqui, talvez se valorize mais o instante. Viver muito ou pouco, que sabemos? Tem que amar a vida.
Mas vida é processo e é vir a ser.Risco.
Os aprendizados mudam, as dúvidas ajudam a olhar por ângulos diferentes. O amor à vida é o mesmo que sentimos por pessoas, proximas ou distantes.
Você é uma pessoa que eu amo.
Abcs
Maysa