segunda-feira, 8 de agosto de 2011

CENTENÁRIO RAUL

foto by cel/ maysa





DATA CENTENÁRIA



Maysa Machado



A vida quase sempre, em meio às lembranças, oferece paisagens, sons, cheiros, frases. Não são apenas sensações renovando momentos percorridos... são pequenas e sábias repetições.

Corria a década de 70. Morávamos na Urca. O casal e seus dois filhos. No apartamento pequeno, de sala, dois quartos, árvores e pássaros, além do suave ranger do bondinho do Pão de Açúcar, ainda, pintado de vermelho — subindo e descendo o morro — as cigarras cantavam, e enlouqueciam o despertar, tornando-o compulsivo, às cinco e meia da manhã.

Nesse trecho do bairro, incrustado entre a Praia Vermelha e a enseada da Baía de Guanabara, o asfalto ficava atapetado por minúsculas flores amarelas, que os garis, um pouco mais tarde, varriam e colocavam na caçamba.

Continua até hoje pacato, bucólico, um paraíso para quem gosta de viver em tranqüilidade. Um pouco mais adiante, a pracinha do Quadrado com seus barcos de pequeno porte. Chama-se, de fato, Praça Cacilda Becker.

Em 74, Caetano gravara Lupicínio, a canção ecoava. “Felicidade foi-se embora/ a saudade no meu peito inda mora/ É por isso que eu gosto lá de fora/ porque sei que a falsidade não vigora... A melodia nostálgica invadia nossas almas, em grande parte, doídas pelo cotidiano sem liberdades, de expressão, ir e vir, reunião.

Algumas tardes, vinha nos visitar um dos avós das crianças. Elegante, discreto, num tom quase cerimonioso, ficava ali conversando com os netos, e tomando o chá inglês, aroma de bergamota, que lhe era servido, com amor.

Meu sogro era uma pessoa encantadora. Reservado, porém solícito; de quando em quando um comentário leve, irônico.

A canção rodava num LP, em suas 78 rpm.

Sabia trechos da letra, repetindo-os como quem filosofa:

...O pensamento parece uma coisa à toa/ mas como é que a gente voa/ quando começa a pensar...”

Assim, fiquei sabendo de sua predileção pelas composições do autor — Lupicínio Rodrigues — gaúcho, como ele se sentia.

Hoje, nesta data, se ainda entre nós estivesse, espalhando com habilidade e sabedoria tudo que descobriu e conheceu, havíamos de comemorar seus cem anos de forma suave e bem humorada. Relembro com saudade sua importante passagem por minha vida. Repetiria o gesto e colocaria as músicas lindas, de seu compositor preferido para tocar, no cd. Quem sabe não o ouviria repetindo frases melódicas, enquanto ia sorvendo, no chimarrão, goles de esperança? Compartilhando causos e notícias dos bastidores políticos, da sofrida época.

Rio, 8 de agosto de 2011







Com um carinhoso abraço
Maysa

8 comentários:

Unknown disse...

Que texto sensível, querida! Gostei muito ... Além, é claro, da trilha sonora.
Beijo poético

Maysa disse...

Querida Ana

Ninguém escapa de um fraseado poético, como o do LUPICÍNIO. Suave e mansa sua voz, quão aguda sua expressão da dor, do desencontro amoroso.
Pois é a música FELICIDADE foi gravada em 1952, e em 74 foi relançada por Caetano, virando um estrondoso sucesso.

Beijo carinhoso
Maysa

Osvaldo Maneschy disse...

Maysa, adorei o texto lembrando o aniversário do nosso grande, imenso, brasileiríssimo Raul Francisco Ryff. Um homem fantástico, tranquilo feito água de poço - como ele mesmo gostava de dizer.

Maysa disse...

Olá Maneschy

Honra tê-lo passeando pelo Ninho.
Pois é, minhas lembranças do Raul são todas ótimas.Um amigo solidário e discretíssimo. Uma verve para contar os causos...
Quando me viu grávida, pela 1ª vez, sentenciou feliz: Com sorte vai ser um menino!E foi!
Naquele tempo em que a medicina por imagem engatinhava, rsrsrs
Beijo, querido
Maysa

Maria Cristina Stolf disse...

Amo Lupicínio!!! ele não tocava nenhum istrumento, compunha assoviando a canção depois colocava as letras, com rimas sofisticadas e imprevisíveis. desvelando uma dor que começa pelo cotovelo, segue pelo coração e gela até a alma!!!

Maysa disse...

Olá Cristina!

Lupicínio ressalta a identidade,o demasiado humano, que traz a capacidade de sofrer e transformar dor em canção. Levantar vôo!
Beijo.
Grata pela presença por aqui, de novo.
Maysa

Eneida Correia Lima Montenegro disse...

Q lindo, Maysa! Mais uma bela homenagem ao Raul! Ah, e as músicas. Adorei. Me emcionei. Sou super fã do Lupicínio. E Felicidade me lembra o meu pai. Era uma da fiaxas de um disco (!) q meu pai gostava muito: um disco do Francisco Alves

Maysa disse...

Eneida

Você gostou da Homenagem, na ABI?
Tive três surpresas bem agradáveis,lá: a presença de Aninha e Raul, a fala do l.A. e o carinho de todos os presentes. Foi bom ter persistido.
Beijo
Maysa